Por Paulo Fonteles Filho
No
transcurso do vigésimo-quinto aniversário do assassinato do ex-deputado e
advogado de posseiros do Sul do Pará, Paulo Fonteles, ocorrido em 11 de Junho
de 1987 é, mais do que nunca necessário avaliar suas ideias e legado para atual
fase da luta pela terra no Brasil. E isso num momento de franca expansão do
Agronegócio, particularmente na Amazônia e a odiosa tentativa de criminalização
dos movimentos sociais brasileiros, praticadas pela grande mídia e reacionários
de todas as espécies.
A vida de combates de Paulo Fonteles atravessou mais de três décadas de
profundo compromisso com questões concernentes aos temas mais urgentes da nação
brasileira como a democracia, as liberdades políticas, a reforma agrária e o
socialismo.
A saga daquele que seria uma das mais contundentes vozes da luta contra o
latifúndio iniciou a atividade política quando o Brasil estava encarcerado pela
quartelada de 31 de Março de 1964 que submeteu o país a infame ditadura e a
submissão aos interesses externos, notadamente estadunidenses.
Como muitos jovens de sua geração iniciou sua militância no ambiente da igreja
católica quando a juventude do Brasil e do mundo davam passos insurgentes
naqueles longínquos anos de 68 na qual Zuenir Ventura ensina-nos que jamais
acabou porque fora um marco, verdadeiro divisor de águas e, ainda é referência
tanto na cultura, no comportamento e na política pelo que introduziu na vida
brasileira. Eram os generosos anos das figuras heroicas de Che Guevara, da
passeata dos 100 mil a enfrentar a dura ditadura hasteando o sangue paraense do
estudante Edson Luís assassinado pela repressão no restaurante Calabouço, como
uma emergência para mudar os destinos nacionais através de um poderoso
movimento de massas.
Eram tempos da rebelião juvenil francesa e da primavera de Praga, de mudanças
tecnológicas e da incerteza da guerra fria, da guerra do Vietña, da estreia na
Broadway do musical "Hair", do lançamento do "Álbum Branco"
dos Beatles, do acirramento da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e
também do assassinato de Martin Luther King e do engendramento do Apartheid na
África do Sul. As mulheres, historicamente, proibidas de atuar na vida pública
queimaram sutiãs e a juventude passou a ter, na sociedade uma presença social autônoma.
No Brasil de 68 Chico Buarque estreia "Roda-Viva" e logo os artistas
da peça sofrem atentado patrocinado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC),
Caetano Veloso e Gilberto Gil lançam o manifesto onde apresentam a
"Tropicália", do contundente discurso do jornalista Márcio Moreira
Alves contra a ditadura, estopim para o Ato Institucional 5 (AI-5). É por essa
época que o General Costa e Silva promove torpe censura contra o cinema e o
teatro e é criado o Conselho Superior de Censura.
O jovem Paulo Fonteles tomou parte nas manifestações que eclodiram naquele
período na qual a cidade de Belém, que por ser terra de legado cabano não
poderia ficar de fora, tendo como referência a necessidade de derrubar os
direitistas de fardas instalados no poder na qual a juventude brasileira ganhou
pessoa e postura.
Militando na Ação Popular Marxista-Leninista (APML) e disposto a radicalizar
muda-se com a mulher Hecilda Veiga para Brasília.
Estudante do curso de História da UNB e professor de cursinho adquire o
codinome de "Peixoto" e é um dos principais dirigentes de juventude
universitária da APML que o levou, junto com a esposa, grávida, em outubro de 1971 a conhecer toda selvageria
e barbárie da repressão política quando fora preso e severamente torturado.
Seus relatos daquele período, pela força da sua poesia, revelam a permanente
luta pela vida na forma da denúncia da bestialidade dos torturadores que
alcunhava como "cães febrentos". Ali, no famigerado Pelotão de
Investigações Criminais (PIC), um dos maiores centros de tortura do país onde
os algozes foram adestrados pela Escola do Panamá de inspiração
norte-americana, tomou, a partir do contato com camponeses presos na guerrilha
do Araguaia a decisão de ingressar, mesmo no calvário dos porões, no Partido
Comunista do Brasil.
Em Brasília militou com Honestino Guimarães, contribuiu para fortalecer a União
Nacional dos Estudantes (UNE) e na prisão conheceu o campesino Zé Porfírio,
líder de Trombas e Formoso.
Enquadrado pelo 477, terrível instituto criado pelo coronel Jarbas Passarinho,
então Ministro da Educação, que proibia estudantes insubmissos de retornarem
aos estudos por três anos depois de presos, Paulo Fonteles vai trabalhar nas
fazendas dos irmãos e ao cumprir tal período e sem nenhuma vocação para capataz
retorna a Universidade e, concomitantemente para a luta popular.
Formado em Direito pela UFPa vai, a convite do Poeta Rui Barata, ter seu
primeiro teste na defesa dos camponeses envolvidos na luta da Fazenda Capaz.
Aquele convite marcaria dali para frente sua opção e militância.
É por esse tempo que, junto com outros companheiros, como Iza e Humberto Cunha,
Hecilda Veiga, Paulo Roberto Ferreira, Jaime Teixeira, João Marques, Egidio
Salles Filho, Rui Barata, Luís Maklouf de Carvalho e tantos outros organizam a
Sociedade Paraense de Direitos Humanos e lança, naquele período o Jornal
"Resistência", verdadeiro ícone da imprensa de combate à ditadura
militar. É uma pena que na historiografia brasileira, quando tratam da imprensa
alternativa, o "Resistência" não tenha tido até hoje o reconhecimento
merecido, seja pela ousadia da linha editorial e formato diferente de tudo que
havia na época.
Paulo Fonteles é eleito o primeiro presidente da SPDDH e nesse ambiente se
coloca à disposição da Comissão Pastoral da Terra (CPT) para advogar para os
camponeses do Sul do Pará.
Frei Ivo me disse quando o conheci, há alguns anos em Belém, que na época a CPT
havia convidado vários advogados para a tarefa e apenas o advogado comunista
havia topado o desafio, contando com a ajuda, sempre generosa do amigo, também
advogado Egidio Salles Filho no sentido de resolver intrincados processos onde
tudo conspirava contra o interesse camponês, desde o judiciário marcado pelo
interesses dos poderosos até a polícia que "jagunçava" para os donos
das grandes extensões de terra . Em grande parte a sua decisão fora tomada pela
experiência da Fazenda Capaz e a comovente relação estabelecida com os
camponeses e a dura realidade encontrada como também pela enorme curiosidade de
saber dos acontecimentos da Guerrilha do Araguaia.
Todo esse ambiente do final da década de setenta fora de muita luta e no mesmo
momento em que os operários paralisavam no ABC paulista que revelou para a cena
brasileira o metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva, os camponeses dos sertões
paraenses ocupavam 250 mil hectares de terras no Baixo-Araguaia, numa
verdadeira guerra de guerrilhas contra o poderio dos latifundiários.
Esse momento foi de militarização da política fundiária, com o engendramento do
Grupo Executivo Araguaia-Tocantins (Getat) que, a bem da verdade estava ali por
conta dos vultosos e alienígenas projetos para a Amazônia no sentido de conter
a luta dos lavradores. Porque tanto naquela época quanto na atualidade os
trabalhadores do campo sempre ofereceram destemida oposição à entrega das
riquezas nacionais. .
Enfrentando o poder dos coronéis das oligarquias rurais, Paulo Fonteles logo é
reconhecido pelos homens e mulheres simples do campo e por eles é
carinhosamente chamado de “advogado-do-mato”.
E nesse momento que seu nome começa a figurar nas tenebrosas listas de marcados
para morrer, muito em função de sua atuação como advogado da oposição sindical
nas contendas contra o pelego Bertoldo, preposto dos militares, na luta para
retomar para as mãos dos lavradores o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Conceição do Araguaia. Naquela época tal município englobava Rio Maria,
Xinguara e Redenção.
A chapa de Bertoldo era apoiada abertamente por gente de triste estirpe como os
famigerados Major Curió e o Ministro Jarbas Passarinho. Todos os instrumentos
repressivos do regime atuaram para derrotar a oposição e até a Rádio Nacional
de Brasília fazia campanha para os caudatários do militarismo.
Nesse contencioso é assassinado Raimundo Ferreira Lima, o "Gringo". O
candidato à presidência da oposição sindical fora a primeira liderança
camponesa assassinada no Sul do Pará quando retornava de longa viagem onde
percorreu o país amealhando apoio político e financeiro para o contencioso
eleitoral. A oposição vence os caudatários do regime e a eleição é empastelada
pelo Ministério do Trabalho.
Daquela chapa, de 1980, participaram ainda João Canuto de Oliveira, Belchior e
Expedito Ribeiro de Souza, além de Paulo Fonteles e todos, sem exceção, foram
mortos pelo latifúndio nos anos que iriam se seguir.
É também neste período que procura sistematizar os acontecimentos dos combates
da Guerrilha do Araguaia e certamente foi seu primeiro pesquisador. Conhece
gente como o "Velho Doza", antigo militante das Ligas Camponesas onde
fora citado como exemplo de combatividade e inteligência no livro de memórias
de Gregório Bezerra, publicado em 1947. Militante comunista Bezerra fora eleito
em 1946 Deputado Federal Constituinte na lendária bancada do Partido Comunista
do Brasil que contava com Luís Carlos Prestes, primeiro senador eleito pelo PC,
além de figuras legendárias como João Amazonas, Maurício Grabois, Carlos
Marighela, Jorge Amado, dentre outras. Conhece, também, Amaro Lins, ligado às
Forças Guerrilheiras do Araguaia.
Cumpre importante papel de advogado de familiares de mortos e desaparecidos
que, em histórica caravana percorrem a região por mais de dez dias em fins de
1980. Tal caravana é um marco da luta dos direitos humanos no Brasil. Dessa
atividade escreve um conjunto de artigos para a "Tribuna da Luta
Operária" onde afirma que no Araguaia a luta fora de massas, tomando a
posição contrária de que nas matas da Amazônia a mais contundente oposição ao
regime militar teria sido um "foco" que, na linguagem política é o
mesmo que atuar sem o povo, como uma espécie de seita. Compreendeu, como poucos
que a luta é um problema científico do ponto de vista de entender as
necessidades populares.
Em 1982 é eleito Deputado Estadual sob a consigna de "Terra, Trabalho e
Independência Nacional" e no curso de sua atuação parlamentar é
constantemente ameaçado e por diversas vezes denuncia da tribuna da Assembleia
Legislativa do Pará as macabras listas de marcados para morrer onde figurava.
Em 1985, um Coronel do Exército e latifundiário, Eddie Castor da Nóbrega
anuncia num dos principais jornais paraenses que iria atentar contra a vida do
então Deputado. Fonteles no mesmo jornal responde que "se um Coronel tem a
ousadia de ameaçar de morte um Deputado abertamente, o que este senhor não faz
com os trabalhadores rurais de sua fazenda", concluiu.
Um dos aspectos de sua passagem pelo parlamento fora a denúncia contra a ditadura
militar e a necessidade histórica de passarmos para um regime democrático, onde
as liberdades políticas pudessem estar asseguradas no altar da vida pública
brasileira.
Denunciava, também, o entreguismo do governo militar com sua subserviência aos
poderosos internacionais e os projetos do imperialismo para a Amazônia. Atuava
com um pé no Plenário e outro nas ruas, aliado não apenas dos camponeses, mas
também da juventude e dos trabalhadores urbanos.
Na luta de ideias fazia fogo contra o revisionismo contemporâneo soviético, da
era Gorbachev e afirmava que a Revolução Bolchevista de 1917 havia sofrido um
duro golpe "por dentro" e que logo o regime da Perestroika iria
agudizar o fim da experiência socialista o que seria uma histórica derrota para
povos e para toda a humanidade. Afinal, o fim da Rússia socialista marcou o
início de uma Nova Ordem Mundial que, através do malsinado "Consenso de
Washington" engendrou tempos neoliberais de profunda ofensiva do capital
contra o mundo do trabalho. A vitória do pensamento dos grandes financistas
construiu uma realidade mundial belicista, unipolar e cada vez mais vai
revelando, na atualidade, o caráter sistêmico da crise do capitalismo que nos
dias atuais enfrenta profunda deterioração.
Em 1986 é candidato à Deputado Federal Constituinte, porém não conseguiu êxito
eleitoral.
Fora do parlamento cria o Centro de Apoio ao Trabalhador Rural e Urbano
(CEATRU) e apoia, como advogado, a luta contra os pelegos no Sindicato dos
Trabalhadores da Construção Civil que baniu o interesse patronal do seio do
sindicato e da categoria.
Em 11 de Junho de 1987 todas as ameaças se confirmam e no final da manhã
daquele dia é assassinado à mando da União Democrática Ruralista (UDR) na
região metropolitana de Belém. A ação que atentou contra a vida de Paulo
Fonteles ocorreu no mesmo momento em que se votava, no âmbito da constituinte,
o capítulo da terra.
Os latifundiários para obter êxito nesse contencioso utilizaram a tática de
comprar parlamentares, um deles, paraense, até então comprometido com a questão
da reforma agrária sumiu misteriosamente da votação.
Outro aspecto da agenda política dos donos do poder no campo era intimidar o
movimento camponês através da covardia da pistolagem e o alvo fora uma das mais
combativas lideranças e Paulo Fonteles fora o escolhido. Tanto que seu
desaparecimento mereceu a atenção de dirigentes nacionais da UDR como o do
funesto Ronaldo Caiado que, indiretamente pelo fato de presidir tão demoníaca
organização deve ter tido, pelo controle estabelecido, relação com os mandantes
do tão sórdido acontecimento.
Tramada na Fazenda Bamerindus, hoje chamada de "Palmares" porque fora
ocupada pelo MST, entre Xinguara e Paraoapebas, a ação que vitimou tão
brilhante vida teve como intermediário e executores gente do antigo regime que
vieram para a Amazônia organizar milícias no sentido de proteger a grande
propriedade rural da "ameaça" camponesa. O fato é que os
latifundiários instalados na Amazônia utilizaram largamente, com a derrota do
regime, de gente do SNI que promoveram uma espécie de "diáspora" para
o norte do Brasil. Esse é o caso, por exemplo, de James Vita Lopes, julgado e
condenado como intermediário da ação que vitimou Fonteles e que pertenceu aos
quadros da Operação Bandeirantes de São Paulo como também do Serviço Nacional
de Informações (SNI).
Até hoje os mandantes do assassinato de Paulo Fonteles não foram levados a
julgamento e, como centenas de casos da pistolagem perpetradas pelo latifúndio
seu crime permanece impune o que revela o caráter do judiciário paraense e
brasileiro.
Mais do que nunca, diante do recrudescimento da violência do latifúndio, as
forças vivas da sociedade paraense e brasileira devem travar o combate contra a
impunidade e criar ambiente propício, mesmo com o recalcitrante judiciário
local, para punir os históricos crimes do latifúndio e passar a ofensiva na
luta contra os violentos que tudo resolvem na intimidação e na liquidação
física de lideranças camponesas e seus apoiadores. Uma das importantes saídas
para a impunidade é a federalização dos crimes praticados pelos poderosos do
campo.
O advogado comunista Paulo Fonteles era um homem de partido e suas ideias
continuam atuais porque a luta pela reforma agrária e pelo socialismo são
absolutamente atuais, desta quadra histórica, deste momento brasileiro que,
mais do que nunca é preciso exemplos para reforçar o caráter das mudanças para
o desenvolvimento, com valorização do mundo do trabalho para o futuro de
progresso social da nação brasileira.
Sua vida de combates continua inspirando até os nossos dias a luta histórica
dos trabalhadores no sentido de sua emancipação social.