Historiador
Secretário Municipal de Formação do PCdoB-Belém
A historiografia latino-americana do século XIX deu grande relevância ao tema da independência, considerada momento de fundação da pátria, e analisou a historia dos Estados nascentes, na perspectiva da legitimação do processo de independência, do rompimento com as metrópoles e do novo poder constituído. A historiografia nacional primou pela história dos “grandes heróis” da independência, elaborando biografias sobre esses líderes, preocupando-se significativamente com esta temática.
Segundo Maria Ligia e Coelho Prado, isto ocorreu em diversos lugares da América Latina: na Argentina, no Chile, no México, dentre outros países. No Brasil, Varhagen publicou sua história de independência, onde a figura de D. Pedro I ganhava grande destaque, sempre guiado pela “mão da Divina Providencia”.
“A Constância da presença dos heróis nacionais na produção desses historiadores liga-se, de um lado, às questões políticas da edificação da nação e, de outro, à perspectiva dominante na época, que conferia fundamentalmente aos “grandes homens” a realização dos feitos históricos.”
Os diversos autores que abordam o assunto dão conta das lutas de representação travadas no campo do simbólico, que determinavam a escolha ou não dos heróis nacionais de cada país. Citam tanto o caso mexicano, onde os conservadores difundiram uma imagem negativa dos padres Miguel Hidalgo e José Maria Morelos, considerados posteriormente heróis nacionais, como o caso venezuelano, o processo de entronização de Simon Bolívar como herói máximo, depois de morrer no exílio, criticado e desprezado, em Santa Maria, na década de 1840.
No Brasil, D. Pedro I, filho do rei de Portugal, nem sempre era aceito como herói da independência. Nossa emancipação não significou na prática rupturas profundas. No caso brasileiro, o filho de D. João teve a responsabilidade pelo “ato glorioso” da emancipação dividida com dona Leopoldina, sua mulher, e com José Bonifácio da Andrada e Silva, seu conselheiro, considerado Patriarca da Independência. Tiradentes foi considerado mártir da independência após a proclamação da Republica.
Ao lado desta historiografia que privilegiava os homens como grandes personagens do processo de emancipação, havia uma outra literatura, escrita por autores menos valorizados, que ressaltavam a figura das heroínas desse movimento. Livros sobre “mulheres célebres”, “mulheres patrióticas”, “mulheres ilustres”, deviam servir como lição de moral para as jovens moças, e alguns deles eram leituras obrigatórias nas escolas.
Os dicionários biográficos, que continham a história de homens e mulheres e as narrativas romanceadas sobre a vida dessas mulheres, constituem fontes importantes sobre a participação das mulheres nas lutas de independência na América Latina.
Ainda que tenhamos tido avanços na historiografia contemporânea em relação a importância da participação das mulheres nos eventos históricos, a figura feminina continua ofuscada, silenciada, em eventos tradicionais como é o caso da independência. Sua participação política é ignorada nos livros de síntese sobre a história da independência na América latina, contribuindo com a difusão da imagem prevalecente da mulher pouco interessada, alheias às questões políticas.
Contrapondo-se a esta historiografia, Maria Ligia e Coelho Prado buscam demonstrar em alguns ensaios a participação e o envolvimento das mulheres nos eventos políticos e no processo de independência, demonstrando que esta participação feminina é maior do que se normalmente supõe. Ressaltam que as mulheres não estavam ausentes do espaço público, mas ao contrário, assumiam papeis significativos nos principais eventos históricos. Para demonstrar esse engajamento feminino, os autores se utilizam das tradicionais biografias produzidas na segunda metade do século XIX e começo do século XX. Ambos procuram ainda analisar o “... discurso desses biógrafos, em sua maioria masculinos, mostrando como sua visão contribuiu para apagar a memória das mulheres militantes rebeldes.”
Sem dúvida, é importante desmistificar a imagem da mulher ausente do evento histórico, e enfatizar sua participação ao lado de seus maridos no exército, muitas vezes com filhos, desempenhando diversas atividades, trabalhando, cozinhando, lavando e costurando, em troca de algum dinheiro. “Quando se fala em exército, nesse período, imaginamos sempre homens marchando a pé ou a cavalo, lutando”.
As mulheres, ao contrário do que se poderia pensar, estiveram presentes nas tropas camponesas de Hidalgo e Morelos, nos exércitos de libertação Zapatistas da Revolução Mexicana de 1910 “Expostas á dureza das campanhas e aos perigos das batalhas, enfrentando corajosamente os azares das guerras”.
Um exemplo desse engajamento foi o caso de uma santa popular da Argentina, Defunta Correa, cuja devoção espalhou-se pela região, após morrer acompanhando o marido nas tropas de Facundo Quironga, nas lutas entre federalistas e unitários, e trazia consigo o filho pequeno, ainda em idade de amamentação. Segundo a lenda, após morrer, continuou saindo leite de seus seios, o que garantiu a vida da criança que continuara amamentando.
Historiadores também relatam a existência de varias mulheres-soldados, que ao lado dos homens, pegavam em armas na luta pela libertação das colônias, tal qual a mítica heroína medieval européia Joana D’Arc. Retomando George Mosse, os autores lembram que na Europa do século XIX, haviam mulheres que entravam para o exército disfarçadas de homens, e que lutaram, por exemplo, na Revolução Francesa. Com relação à Alemanha, Mosse ainda cita as “heroínas alemães” das guerras entre 1807 e 1815, no qual o autor documenta a presença de dezessete mulheres vestidas de homens que abraçaram os interesses nacionais.
O mesmo acontece na América Latina, onde os biógrafos relatam a participação dessas mulheres-soldados no exército, lutando pela libertação colonial, defendendo a independência. Maria Ligia e Coelho Prado citam figura conhecida de Maria Quitéria de Jesus, que optou pela causa da independência de forma exemplar, se indignando ao ouvir histórias na pequena propriedade de seu pai, interior da Bahia, sobre a opressão exercida por Portugal, aumentando seu amor pela pátria. Ela não tardou a entrar para o exército patriótico, após ter fugido para casa da irmã casada, que a ajudou a vestir-se de homem, a fim de realizar sua vontade de lutar pela causa da independência. Após ter participado de algumas batalhas, distinguir-se em ações, foi condecorada pelo imperador com a ordem do Cruzeiro, em agosto de 1823.
Em alguns casos, as mulheres não foram obrigadas a se disfarçarem de homens para participarem da guerra. Podemos citar vários exemplos, como é o caso das filhas de Hidalgo; Manuela Pedraza, conhecida por La Tucumana, lutou contra a invasão inglesa de Buenos Aires e, 1806 ao lado do marido, recebendo o grau de tenente; a portenha Maria Remedio Del Valle, que era integrante dos exércitos de San Martín no Peru, dentre outras.
As mulheres-soldados que lutaram nas tropas de Bolívar também foram elogiadas por ele numa proclamação ao exército, onde ele afirma: “ ... Até o belo sexo, as delicias do gênero humano, nossas amazonas combateram contra os tiranos de São Carlos com uma coragem divina, ainda que sem êxito. Os monstros e tigres da Espanha chegaram ao cume da covardia de sua nação, dirigiram as infames armas contra os cândidos e femininos peitos de nossas beldades; derramaram seu sangue; fizeram expirar muitas delas e as encheram de grilhões, porque conceberam o sublime signio de libertar sua adorada pátria”.
Não podemos nos esquecer da companheira de Bolívar, que o conheceu em 1822 em Lima, e deixou o marido inglês para acompanha-lo. Manuela Sáenz ficou conhecida por sua coragem, iniciativa e desdém pelas convenções sociais, e passou pela história como a amante do líder máximo das lutas pela independência. Após a morte do líder, recusou-se a voltar para o marido que ainda a queria. Havia ainda as mulheres que trabalhavam como mensageiras, cabendo a estas levarem informações para os insurgentes. Muitas acabaram presas, e outras mortas ao serem descobertas.
Trazer a tona a história de luta das mulheres é, ao mesmo tempo, uma questão de justiça com todas as combativas e altaneiras guerreiras que tombaram na luta pela construção de uma sociedade sem opressores e oprimidos, e luz à luta atual das mulheres, que no mundo contemporâneo, em tempos de globalização financeira e crise do sistema produtor de mercadoria, ainda ocupam ruas e praças lutando por direitos fundamentais a vida, com a coragem heróica de quem está disposta a morrer para que a tão sonhada “Pátria Livre” viva!
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