segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Carta dos Camponeses do Araguaia ao companheiro Lula.

Companheiro Lula,

Somos centenas de homens e mulheres, retirantes dos largos sertões brasileiros, filhos das grotas e das currutelas, das matas e da alargada pobreza, somos a humanidade do caudaloso Araguaia, rio largo dos Karajás, dos garimpos e dos castanhais.

Por todo um período histórico fomos atingidos violentamente quando, em 1972, tropas militares ensandecidas invadiram a região, palmilharam nossas casas e roças, perseguindo a nós e aos nossos amigos na qual chamávamos carinhosamente de “Povo da Mata” e que depois se tornariam guerrilheiros lutando pela insurgente liberdade.

Nesse processo o regime se voltou contra os guerrilheiros e, também, contra nós. Pudemos conhecer a tortura, o pau-de-arara, nossas filhas foram violadas e fomos atingidos naquilo que para nós é mais sagrado, a dignidade.

Nossas poucas terras foram tomadas e nos submeteram a miséria.

Transformaram-nos em rastejadores para caçar quem sempre nos teve respeito e solidariedade.

Se temos na atualidade, direito ao voto e à organização, se os sindicatos tem autonomia, se os trabalhadores podem reivindicar direitos e se não há mais censuras e exílios é porque muitos lutaram e morreram num combate sempre desigual contra as forças de segurança da ditadura militar.

Companheiro Lula,

Uma dívida histórica o Brasil têm para conosco, camponeses dos sertões do Araguaia.

Uma dívida reconhecida, cantada em verso e prosa, anunciada pelas mais altas autoridades do país

No tempo em que dirigias o Brasil, conquistamos nossos direitos de anistiados e o país ousou pautar a civilizatória luta pelo direito à memória e a verdade.

Há dois anos, companheiro, as gentes de Brasília e de Belém pousaram na pequena São Domingos do Araguaia e numa manhã clara, densa, houve pedidos de perdão oficial, discursos, lágrimas, bandeiras vermelhas como nunca tinha se visto por aqueles rincões. Tu estavas lá, sentíamos isso.

As gentes de São Geraldo à Itaipavas, de Boa Vista à Gameleira, da Piçarra à Xambioá, do Tabocão ao Brejo Grande, da Palestina à Santa Izabel, da Santa Cruz à Vila Sucupira e até os que ficam mais distantes, na Serra dos Martírios/Andorinhas, foram a aquela antiga currutela, hoje município, verem direitos serem reconhecidos.

Todos estavam comovidos.

Um contentamento que faz furor no povo relampejava por nossos olhos agrestes e uma festa popular se anunciou na praça da cidade, e num vento democrático que soprava cintilante reconheceu-se a carne violada do mais brasileiro dos brasileiros, os camponeses pobres do Araguaia.

O ministro por trás dos bigodes não conseguia esconder a emoção.

A governadora sob o sol quente suava em bicas e o prefeito era todo sorrisos. Deputados davam tapinhas nas costas e flashes espocavam em nossos rostos sofridos.

No centro de tudo estávamos lá, centenas de lavradores atingidos pelo terrorismo dos estreludos generais que tomaram o país de assalto e sufocaram, por vinte e um anos, as liberdades públicas e a democracia.

Ali, naquele ato festivo, da vitória da memória sobre o esquecimento, anunciou-se nossa condição de anistiados políticos e, por conseguinte, a importante reparação econômica para que pudéssemos viver uma vida mais digna, sem a miséria geral que insiste fazer morada em nossas vidas.

Companheiro Lula,

Acontece que satanás sempre vem a galope.

Dias depois de nosso reconhecimento, como quem enviado por belzebú, a mais infame caricatura de nosso passado repressor, o tristemente famoso Deputado Jair Bolsonaro, toma a tribuna da Câmara dos Deputados e faz um contundente discurso contra nós e nos chama de “marginais do Araguaia”.

Ato contínuo, um advogado a soldo das viúvas da ditadura militar dá entrada em uma ação civil pública na vigésima - sétima Vara Federal do Rio de Janeiro e um Juíz substituto, José Carlos Zebulum, decide apenas com recortes de jornais suspender nossos direitos à reparação econômica.

Dois anos já se passaram e cinco daqueles que estavam naquela festa democrática de São Domingos já foram a óbito. Morreram de tristeza.

O último, na Palestina do Pará, em novembro de 2010, num pequeno e mal-equipado hospital público no interior do Pará. .
Um de nossos muitos amigos, o jurista César Brito, ex-presidente da Seção Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, diz que o sentido da liminar que suspendeu nosso direito está no fato de que os conservadores querem inviabilizar as conquistas que a luta pelo direito à memória e a verdade tem ensejado na vida nacional.

Não pensemos que tais posições, anacrônicas, estão mortas.

Um conjunto de fatores nos ensina que o aprofundamento da vida democrática terá um longo e árduo caminho a percorrer e o reconhecimento daquilo que foi feito contra os pobres do Araguaia é parte desta imensa tarefa, que ajuda a emancipar o Brasil.

Um desses fatores, na qual estamos comprometidos, é o de lutar para encontrarmos nossos amigos guerrilheiros que para nós é questão de honra.

Aliás, fomos os primeiros a informar o país sobre locais de sepultamentos, como no Cemitério de Xambioá. Em 1980, quando da primeira caravana de familiares não
tivemos medo em receber pais, mães e irmãos dos insurgentes do Araguaia.

Guardamos, ainda, a mesma coragem da Maria da Metade.

Precisamos de tua voz, companheiro Lula.

Mais do que nunca precisamos de vozes a defender o nosso povo sofrido, seja aqui ou em qualquer lugar deste país brasileiro onde houver, contra os mais modestos, humilhações como as que têm sido feitas contra nós, lavradores dos sertões do Araguaia.

Aqui concluímos que estaremos seguros de nossos direitos se a tua voz, a mais importante voz do povo brasileiro ecoar, com a força que têm e com o significado que ensina de que sempre a esperança haverá de vencer o medo.

São Geraldo do Araguaia, 30 de Julho de 2011.

Associação dos Torturados na Guerrilha do Araguaia
Instituto Paulo Fonteles

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