quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O indivíduo, a sociedade e a morte de Eloá


Mais de três anos depois do espetáculo televisivo produzido pelo cárcere seguido de morte de Eloá Pimentel, com apenas 15 anos de idade, a mídia se volta novamente para o caso dando fôlego, às mais diferentes teses sobre o comportamento do jovem rapaz, Lindemberg Alves, em julgamento há três dias. Por um lado, o psicopata, decepcionado e louco de amor; por outro, a caricatura do Romeu arrependido, sofrido e que esbravejou, também, em tom de loucura, que amava e queria Eloá. Em ambos, o amor ou o que se pensa sobre o amor delineia o tom e encobre o que, de fato, devemos debater. Definitivamente, não foi o amor que matou Eloá.

As análises do caso se voltam, quase que completamente, para o comportamento do jovem agressor. O assassinato é tomado por uma áurea de debate comportamental individual, com privilégio total e absoluto, das provocações subjetivas para que alguém possa ter cometido tamanha atrocidade. Em nenhum momento, os policiais, psiquiatras, psicólogos, advogados... Convidados, pelos apresentadores de programas populares ou não, ao tratar do caso em rede nacional, levantaram questões acerca do que elaboramos sobre: sociedade patriarcal, machismo, violência de gênero, feminicídio, banalização midiática da violência Para falar dos pontos que mais vem merecendo produção feminista, na academia e na política.

Não há problemas nem teóricos, nem políticos; nem muito menos midiáticos em discorrer sobre o indivíduo. Muito pelo contrário, há muito que as ciências humanas compreendem e elaboram a existência do indivíduo. No entanto, há muito, também, que as mesmas ciências humanas, ao elaborar sobre a relação indivíduo/sociedade, defendem que não devemos tomá-la de maneira maniqueísta ou absolutizar, de forma tuteladora, o que convencionamos chamar de social ou individual.

Falo sobre isso, pois, o machismo é um fenômeno sócio-político-cultural mais compreendido como genético que eu conheço sob a face da terra. De tão arraigado, parece estar presente no DNA de homens e mulheres. O machismo não paira no ar; nem corre no sangue de ninguém. É real, material e identitário e se mostra, em toda a sua concretude, por meio de comportamentos - individuais ou não; que se expressam dentro e fora de casa; nos espaços públicos e privados; nos partidos, nas igrejas, no estado. O machismo estrutura e é estruturado pela sociedade.

Nos comportamentos machistas, analisados, apenas, por sua "matriz" individual, o que mais aparece são as teses sobre posse, honra e ciúmes. Ora, ora... já desbaratamos que posse, honra e ciúme - repito - não são "amor" e não contribuem, em nada, para garantir uma boa relação afetiva. Nem para apimentá-la, como muitos preferem. Esta tríade potencializa a feição mais tragi-romântica das chamadas histórias de amor e são cantadas pela mídia, cotidianamente, nos casos mais famosos e nos mais anônimos.

Lindemberg não estava decepcionado amorosamente; decepcionados ficam qualquer um de nós quando levamos um “fora”. Ele estava inconformado com a decisão de Eloá em terminar a relação, que tudo indica, já tinha indícios de violência seja física, psicológica ou moral. A mídia, em sua versão conservadora, e graduada da ciência não tinha – e continua sem ter - o direito de fazer dela, algoz ao ter se recusado a "dialogar" com o moço trabalhador, jovem e sofrido. Por ter assassinado Eloá, Lindemberg não deixa de ser nem jovem, nem trabalhador, nem sofrido, nem psicopata – se for o caso. Mas, estas características, que também tem expressão individual e social, não inibem o machismo e suas múltiplas feições, comportamentos, inclinações ou quaisquer nomenclaturas que o valham.

Não defendo nenhuma forma de exposição pública de Lindemberg. De maneira alguma. Ele precisa ser julgado, com base nos princípios de direitos humanos, e condenado para que este não seja mais um caso - dentre tantos outros – impune pelo Estado e pela mídia. Ele, assim como muitos (muitos, mesmo) homens, jovem ou não, também são vítimas (e fazem vítimas), em diferentes graus, por conta do machismo, do homofobismo e do racismo. Mas, o Estado, neste caso, prioritariamente, o poder judiciário, não pode se pautar (e potencializar) a vertente institucional do machismo que violenta ainda mais as mulheres, em especial as mais jovens e pobres, que são as que mais permanecem em relações violentas por medo do ponto crítico da violência: a morte.

Neste caso, especificamente, resta saber, sob quais condições Lindemberg será julgado e condenado. Chegou a hora, mais uma vez, de acompanharmos o comportamento do Estado. Pois, o destino de Eloá já é conhecido. Ela morreu muitas vezes ao longo de todos os dias em que seu desespero foi exposto frente à imobilidade do Estado e da sociedade brasileira; morreu quando foi julgada por não querer o “amor” de Lindemberg; morreu quando foi culpada por ser tão bonita – “a mais bonita da escola” – e não ter querido dialogar com um rapaz tão apaixonado; morreu quando teve sua vida interrompida por tiros de revólver em sua virilha e rosto, que atingiram sua identidade e sua sexualidade, numa profunda declaração de domínio e controle sobre o corpo e a vida das mulheres.

Mas, Eloá vive! Vive na luta que travamos todos os dias; vive na alegria que vamos levar para avenida no carnaval de Fortaleza; vive em nossas meninas e meninos que queremos que tenham uma vida livre de todas as formas de opressão e violência, no presente e no futuro. Vive, pois não abriremos mão de nossa identidade feminista, de fazer política e de contribuir para a construção de uma outra sociedade. Lutemos em nome dela, por nós e por cada uma de nós!


Nágyla Drumond – Socióloga. Professora Universitária. Secretária Estadual de Movimentos Sociais do PCdoB. Integra a Coordenação Estadual da UBM/CE e preside o Centro Socorro Abreu.

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